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terça-feira, 23 de outubro de 2012
Caçada ao racismo
Julgado pelo suposto racismo de sua obra, Lobato pode ser condenado a ter publicada com ela um mea culpa, uma espécie de ressalva histórica. Na pior das hipóteses, ela pode ser retirada do Programa Nacional Biblioteca da Escola, que distribui milhões de livros a escolas públicas. Por trás da discussão literária, o que surge são as vísceras de uma questão bem mais profunda: como o País está disposto a lidar com seu racismo, não só o que se traduz no abismo socioeconômico entre negros e brancos, mas também um tipo mais delicado, aquele do plano simbólico da literatura e outros objetos culturais produzidos antes das conquistas de direitos humanos e que voltam a assombrar um país que se jacta de sua suposta democracia racial.
Morto em 1948, há dois anos o autor virou foco de uma disputa inédita, cuja envergadura ideológica soa incomum à sociedade brasileira. Caçadas de Pedrinho, usado em duas ocasiões pelo PNBE, teve sua distribuição ameaçada em 2010 por um parecer do Conselho Nacional de Educação, que, em resposta à ouvidora da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), recomendava que o livro com teor racista não fosse selecionado – e, caso o fosse, que contivesse uma ressalva. O motivo: racismo. O governo aceitou exigir uma nota que discutisse “a presença de estereótipos raciais” e oferecesse contextualização histórica. Mas o Instituto de Advocacia Racial (Iara) e o técnico em gestão educacional Antonio da Costa Neto acharam insuficiente e entraram com um mandado de segurança para exigir a preparação dos professores da rede pública. O caso parou no STF. Convocados pelo ministro Luiz Fux, as partes se reuniram, sem consenso. Outra reunião está marcada para a terça-feira 25. Caso não haja acordo, o processo pode ir ao plenário do STF.
Passado e futuro se chocam no debate. Quando Lobato escreveu seus livros infantis, a escravidão tinha sido abolida havia 50 anos. Os ex-escravos eram marginalizados por uma segregação informal que só foi amortecida lentamente, tanto que é visível hoje nas favelas do Rio, na periferia de Salvador, nas filas de desempregados País afora, assim como no modo como negros são retratados nas novelas e encarados pelo sistema policial e judiciário. Perto de 50,7% da população se declarou preta ou parda ao Censo de 2010. Mas se eles são metade do País, estão bem atrás em termos de oportunidade. Segundo um estudo do Ipea que comparou os indicadores sociais de negros e brancos no Brasil, entre 1995 e 2005, há um abismo racial socioeconômico. Um negro ganha em média metade do salário de um branco com mesmo grau de instrução. Entre os negros, a taxa de analfabetismo acima de 15 anos é até três vezes maior. Outros dados trazem um retrato igualmente cru dessa realidade. Os negros são 65% dos presos. Um adolescente negro tem quatro vezes mais risco de ser assassinado do que um branco e três vezes menos chance de chegar ao ensino superior. A distância tem diminuído, é verdade. Mas se as taxas persistirem, os negros alcançarão o nível de pobreza dos brancos em meio século.
Os negros também têm menos chances de se fazer ouvir, mesmo quando se trata do preconceito de cor. A cada 17 denúncias de racismo, apenas uma vira ação penal no Brasil, segundo constatou o pesquisador Ivair Augusto dos Santos em sua tese de doutorado, que virou o livro Direitos Humanos e as Práticas de Racismo. Para Santos, o racismo brasileiro é institucionalizado. “É no atendimento de saúde, na abordagem policial, no mercado de trabalho que o negro sofre o racismo. No Brasil, o racismo é difícil de detectar.” Quando criança, aluno de uma escola pública da zona leste de São Paulo, Santos recebeu da professora o livro de Lobato para ler. Ficou chocado com a Tia Nastácia retratada como “macaca de carvão” e com a displicência da professora em relação ao tema. “A reação que a gente tem é de vergonha. Os meus filhos não vão ler esse livro.”
Mas retirar o livro de Lobato da lista de material didático do MEC não seria uma forma de recalcar o racismo em vez de enfrentá-lo, de combater o preconceito apenas no âmbito simbólico e lavar as mãos quanto à promoção de igualdade social concreta? A discussão se divide entre os defensores inexoráveis da obra literária, que, dizem, não pode sofrer o peso do contexto histórico, e os que se preocupam acima de tudo com as representações do negro, com a reprodução de estereótipos. “Estão querendo ler o passado com o olhar do presente, propagar um analfabetismo histórico que é antiliterário por excelência”, diz João Ceccantini, especialista no autor e professor da Unesp. Ele vê uma ditadura do politicamente correto a ameaçar a literatura nas escolas. O que faz de Lobato um autor único, diz, são os voos de imaginação de seus personagens. “Querer proibir o livro no ensino público é pensar que o leitor e o educador não têm senso crítico nenhum e que o livro precisa de bula. E, pior: é privar as crianças das escolas públicas de uma narrativa sofisticada e imaginativa, que retrata o brasileirinho, assim como Tom Sawyer retrata o americaninho daquela época.”
As atuais denúncias ao racismo de Lobato, dizem os literatos, seriam uma boa chance para pesquisar sobre leitura no Brasil. “Crianças e jovens que leem Caçadas de Pedrinho ou outras obras lobatianas opinam que o livro incentiva atitudes racistas? Leitores afrodescendentes sentem-se ofendidos quando leem as histórias do Sítio?”, pergunta-se, diz Marisa Lajolo, professora da USP e especialista em Monteiro Lobato. “Que tipo de cidadão forma a frase final de Caçadas de Pedrinho, na qual Tia Nastácia, tomando o lugar de Dona Benta em um carrinho, proclama: “Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…” Será que a voz da própria Tia Nastácia, no livro, não é mais convincente do que rodapés e advertências?” Lajolo é contra incluir ressalvas, como notas de rodapé, ao livro. “Elas manifestam uma vontade disfarçada de gerenciar a leitura, impondo certos significados aos leitores. Em matéria de interpretação de arte não acredito em verdades absolutas. Tais questões não se resolvem com leis. Resolvem-se com diálogo e com qualidade de educação.”
O caso de Lobato está longe de ser o único. Em 2011, o romance Huckleberry Finn, do americano Mark Twain (1835-1910) foi republicado em edição modificada nos Estados Unidos, por chamar negros pelo pejorativo nigger. O termo aparece mais de 200 vezes ao longo da obra publicada em 1884. Após ser boicotado por escolas e currículos país afora, uma nova edição (para alguns, “mais politicamente correta”) foi publicada por outra editora, com a palavra nigger substituída por slave. O que enfureceu especialistas em literatura. “A culpa está no ensino, não no livro”, disse a professora de literatura Sarah Churchwell. “Você não pode mudar Dickens por ser incompatível com o modo de ensinar. Os livros de Twain não são apenas documentos literários, mas históricos, e essa palavra (nigger) é totêmica, porque codifica toda a violência da escravidão. O objetivo da literatura é expor a gente a ideias diferentes e épocas diferentes e elas não serão sempre boazinhas.”
Um tipo de raciocínio contrário ao do movimento negro e de boa parte dos intelectuais do campo social. “Estão tratando isso como uma questão literária. O que as pessoas precisam entender é que essa é uma decisão de política pública, de compra de milhões de livros para ensinar crianças”, diz o cientista político João Feres, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O PNBE distribui cerca de 6,7 milhões de obras literárias a mais de 50 mil escolas do ensino fundamental. Feres estranha o espanto da sociedade, que atribuiu à discussão a pecha de “politicamente correta”. Numa das edições do livro, há uma nota que contextualiza a morte da onça, para evitar o incitamento à morte de um animal em extinção. “Essa grande aventura da turma do Sítio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje”, diz a nota. “Pode fazer ressalva à onça, mas não ao negro? É o fim da picada.”
O parecer do CNE sustenta o mesmo ponto, ao dizer que “o mesmo cuidado tomado com a inserção de duas notas explicativas e de contextualização da obra não é adotado em relação aos estereótipos raciais presentes na obra.” Mas, apesar do frisson causado na mídia, nunca se falou em censura do livro. O que está em jogo, em um primeiro momento, é a aceitação ou não da obra de Lobato na lista de livros do PNBE, o que permitirá que ele seja entregue a milhões de crianças. Em um segundo momento, o que segue em disputa é como lidar com o racismo. “O Brasil é um país racista e precisa enfrentar essa realidade”, diz Feres. “Ninguém está falando em censura. O que é preciso é combater o racismo tanto no âmbito simbólico quanto no âmbito das políticas públicas. São ambas importantes para lidar com o preconceito.”
O Estado tem agido para dar voz e oportunidades aos negros no âmbito concreto, por meio de ações afirmativas. Desde sua implantação, em 2004, o ProUni beneficiou mais de 1 milhão de alunos com bolsas, quase um terço deles de negros. O MEC adotou, entre os critérios de acesso ao Fundo de Financiamento ao Estudante de Nível Superior, uma fórmula de cálculo de pontuação que os beneficia. O ensino de história africana e da diáspora se tornou obrigatório. E as cotas, que pipocaram em uma ou outra universidade, vão se tornar a regra. Com a sanção presidencial à lei, metade das vagas em todas as universidades públicas brasileiras ficará com alunos oriundos de escolas públicas (com foco em negros e indígenas).
O aguardado Programa Nacional de Ações Afirmativas deve sair em outubro. Com ele, a Seppir quer arrancar do governo uma verba substancial para oferecer bolsas de permanência para cotistas negros e bolsas de iniciação científica, além de pressionar por cotas para negros em todo o funcionalismo. Hoje, quatro estados têm reservas de vagas em concursos públicos. A ideia é padronizar a conquista. “Mas não se pode esquecer do plano simbólico. No plano concreto é fácil medir. No simbólico, existe uma resistência a reconhecer o racismo. Precisamos mostrar o negro como alguém que produz conhecimento e não como um ser animalizado”, diz Luiza Helena de Barros, ministra da Igualdade Racial. É onde entra Monteiro Lobato. A posição do governo é de aceitar o consenso, caso surja algum no STF. Mas a ministra, negra, se reserva o direito de opinar. “Nosso entendimento sempre foi o de que recursos públicos não podem ser utilizados para adquirir obras consideradas racistas. Racismo é algo que existia naquele tempo como uma posição majoritária, e ainda existe hoje.”
O racismo de Monteiro Lobato parece surgir com nitidez nas referências animalizadas à personagem negra Tia Nastácia, sempre “a negra”. Está também em romances adultos, em O Presidente Negro, com toda a discussão da eugenia como solução para tensões raciais finalizada pela proposta dos raios ômega e em cartas a amigos, onde ele admitiu que sentia inveja dos norte-americanos por ter criado algo como a Ku Klux Klan. Mas privar a maioria dos brasileiros (que crescem nos bancos da escola pública) de um passado vergonhoso não seria anti-histórico? O próprio Lobato, após ofender os caboclos do interior com o preguiçoso Jeca Tatu, pediu desculpas em um artigo de jornal e numa nota que acompanhou a quarta edição de Urupês. “Eu ignorava que eras assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharada cruel que te faz feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não.” Ter informação sobre o passado e o presente pode mudar crenças e abrir perspectivas. O que o debate em torno de Lobato pode iluminar é qual a melhor maneira de se abordar o passado escravista brasileiro e o igualmente triste presente de desigualdade entre brancos e negros. Nisso, a leitura tem papel central. Como reza a frase de Lobato, já quase um lugar comum: “Um país se faz de homens e livros”.
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