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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Boneca Emília ganha biografia 'não autorizada'

Escritora cearense lança livro com histórias e curiosidades sobre a personagem do "Sítio do Picapau Amarelo"

 

Emília era muda e começou a falar. Ela não tem coração — literalmente — e se casou por interesse, só porque queria ser marquesa. Torce pelo Palmeiras, pesa cinco quilos, só teve um emprego na vida e pratica bullying contra os moradores do Sítio do Picapau Amarelo. Sua dona, Narizinho, a define assim: algodão por fora, asneira por dentro. Dona Benta, mais doce, diz que ela é “uma fadinha” que anda pelo mundo fantasiada de boneca de pano. Espevitada, tagarela, atrevida — politicamente incorreta, por vezes —, a personagem de Monteiro Lobato (1882-1948) entrou para o imaginário brasileiro a ponto de parecer ter vida própria. Tanta vida própria que acaba de ser radiografada em um livro, “Emília — Uma biografia não autorizada da Marquesa de Rabicó” (Casa da Palavra), no qual a cearense Socorro Acioli revê toda a obra de Lobato para narrar a trajetória da personagem — mais agitada que a de muita gente de carne e osso, diga-se.

— A minha dissertação de mestrado (na Universidade Federal do Ceará) foi sobre a leitura na obra de Monteiro Lobato. Aí resolvi incluir um capítulo que fosse uma biografia da Emília, e para isso reli todos os livros dele marcando as passagens com ela — conta Socorro, que suprimiu os trechos mais acadêmicos para publicar o livro, reunindo aventuras e curiosidades sobre a boneca.

or exemplo: Emília tem data e local de nascimento — e esse lugar não é o Sítio do Picapau Amarelo, onde ela foi confeccionada por Tia Nastácia. A boneca nasceu da pena de Monteiro Lobato em São Paulo, na Rua Boa Vista 52, em algum dia de 1920. É o ano de escritura de “A menina do narizinho arrebitado”, que depois Lobato lançaria com o título “Reinações de Narizinho”. Nasceu muda, como os leitores sabem, e só disse a primeira frase — “Que gosto horrível de sapo na boca!” — depois de tomar uma pílula falante no Reino das Águas Claras. Não parou de falar nunca mais.

Às vezes, falou até demais. Não à toa, é ela o pivô das acusações de racismo que seu criador tem sofrido ao longo dos anos, ao chamar Tia Nastácia de “beiçuda” e “macaca de carvão”, entre outras ofensas. Mas a “biografia” não fala desse lado B de Emília. E Socorro Acioli se justifica:

— Quis focar o trabalho na análise de construção de personagem. Lobato conseguiu o máximo com Emília em 24 livros, é uma aula para qualquer escritor ou roteirista — afirma a autora. — Não faço de conta que isso (o racismo) não existe, mas não quis tratar de questões laterais. E há um momento em que Emília diz que criticar Tia Nastácia é como criticar a ela mesma. Considero isso uma metáfora do que nós brasileiros somos.

Monteiro Lobato, nas cartas pesquisadas por Socorro Acioli, contava ter perdido o “controle” sobre a personagem. “Ela me entra nos dois dedos que batem as teclas e diz o que quer, não o que eu quero. Cada vez mais Emília é o que quer ser, e não o que eu quero que ela seja. Fez de mim um ‘aparelho’, como se diz em linguagem espírita”, escreveu o autor, em 1943, ao amigo Godofredo Rangel.

A pesquisa de Socorro questiona pormenores que não chamariam a atenção do leitor mais desatento. Já percebeu que Emília nunca pegou doença de gente? A explicação é dada pela própria boneca: “Eu sou de pano e as doenças não penetram o meu corpo. Sabe por quê? Porque o pano é uma peneirinha que coa a doença...”. Com seus olhos feitos de retrós, ela vê melhor do que qualquer pessoa do Sítio e se diz capaz de achar uma pulga na Ursa Maior. Boneca de pano come? Tem horas em que ela diz que não — e sente inveja dos humanos —, mas isso não a impede de comer croquetes no Reino das Águas Claras.

DICIONÁRIO DE “EMILIÊS"

Dirce Migliaccio também viveu a personagem na versão da Globo, em 1977 - Divulgação

Como ela fala muito — mas também fala errado —, Socorro se empenhou em fazer um inventário das palavras inventadas pela boneca, criando um dicionário do “emiliês”. Borboletograma, por exemplo, é um telegrama enviado nas asas das borboletas. Petróleo ela chama de “azeite de defunto”. “Bissurdo” é absurdo. O verbete “Tia Nastácia” equivale a “máquina de fazer comida”. E há até palavras misteriosas, que só existem no idioma da personagem. Alguém sabe o que é “crocotós”? Emília explica com clareza: “Crocotó é uma coisa que a gente não sabe bem o que é. Crocotó é tudo que sai para fora de qualquer coisa lisa. (...) Crocotó é tudo que é empelotado ou espichadinho como os tais chicotes. Os marcianos são crocotíssimos.” Ah, bom.

O livro relembra as aventuras de Emília pelo Reino das Águas Claras, pela lua, pelo País da Gramática (onde ela entrevista o verbo ser como repórter de “O Grito do Picapau Amarelo”, jornal jamais publicado e seu único emprego na vida), entre outras. Também o casamento por interesse com Rabicó, porque sonhava ser princesa — e marquesa, afinal, já era um bom começo. Mas tem vergonha do marido. Quando vê Tia Nastácia fazendo um leitão para o Natal, começa a comemorar, jurando ter ficado finalmente viúva.

A pesquisa de Socorro lembra como a imagem que se tem de Emília foi criada pela televisão. Afinal, na primeira descrição de Lobato ela é feia e tem “cara de bruxa”. Ao longo de 24 livros, a aparência dela vai mudando, inclusive pelas mãos dos seus muitos ilustradores (“Estes diabos que desenham a minha figura nos livros. Cada qual me faz de um jeito”, diz Emília).

A primeira Emília na telinha foi Lúcia Lambertini, em 1952, na TV Tupi do Rio de Janeiro(um patrocinador até suspendeu os anúncios, por não dar conta da demanda criada pelo sucesso da série). A primeira boneca veio em 1954, produzida pela Mesbla. O programa mais longevo, com 1.436 capítulos, estreou na TV Globo nos anos 1970. Reny de Oliveira, segunda Emília dessa série, foi demitida depois de posar para a “Playboy”, que anunciou o ensaio assim: “Escândalo no Sítio do Picapau: Emília tira a roupa!”. A primeira criança a interpretar a boneca foi Isabelle Drummond, em 2001.

É bom lembrar que, apesar do título, a biografia de Emília é, sim, autorizada pelos herdeiros de Monteiro Lobato. O título, diz Socorro, é uma brincadeira com a recente polêmica sobre a publicação de biografias não autorizadas e também com a personagem. É que Emília uma vez contratou o Visconde de Sabugosa para escrever suas memórias, mas desistiu quando viu o sabugo de milho escrevendo umas verdades sobre ela e assumiu o posto, começando a inventar aventuras que jamais haviam acontecido. Quando é confrontada por Dona Benta, ela responde: “Minhas memórias são diferentes de todas as outras. Eu conto o que houve e o que deveria acontecer”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Isabelle Drummond e Reny,as melhores Emilias!!